11 de agosto de 2010

sementeiras imaginárias

O último dia que passamos juntos encontrei-o a rir, bem disposto, numa alegria fonte das lesões cerebrais que o protegeram da realidade. Pedia muitas vezes para partir, no entanto, até ao fim insistiu em sair daquela sala, ir para a rua, para casa. Naquela tarde encontrei-o muito "acordado", a podar uma árvore com o meu braço a servir-lhe de serrote em movimentos só nossos, que ninguém entendia mas que nos permitiram partilhar as tarefas que mais prazer lhe davam... cuidar das árvores, rega-las, cavar e mexer a terra. Depois disso passamos à sementeira e os movimentos do meu braço, orientados pelos dele faziam-se em círculos para que as sementes ficassem bem espalhadas. Após todas as "tarefas" estarem concluídas pediu-me que ligasse para um número de telefone que ia repetindo enquanto se corrigia em voz alta: "272... 5... 4... não, não, 55... 4..., não... 272..." tentei acalma-lo, dizendo-lhe que tinha que ir, já era tarde. Mas só me disse adeus porque para ele seria mais um "até já", pois para ele eu iria buscar alguém para nos levar dali. Despedi-de dele, abracei o seu corpo muito débil, beijei a cara e as mãos que me conduziram pela vida. A sua voz (num tom bastante alto) e as suas divagações numéricas acompanharam-me ao longo do corredor e enquanto esperava pelo elevador vi ao fundo um campo cheio de plantas a crescer... lembrei-me das que semeamos juntos naquela tarde e em como um dia iria "crescer".
 
voltei a casa onde crescem os dias que eu plantei e onde as manhãs precisam da minha presença. Esperei por novos resultados de novas análises. Esperei notícias enquanto me partilhei tantas coisas que vivi com ele e como foi poético este encontro feito de tantas tarefas imaginárias. Quando liguei novamente e me disseram que tinha partido percebi que por mais que julgasse que sim, nem de longe estava preparada para deixar de o ver, de o ouvir resmungar e reclamar pelos seus direitos e para impor os seus argumentos. Iniciamos uma nova viagem, mas desta vez marcada pelo silêncio, um silêncio que precisava para acomodar os últimos dias, todos os anos.
 
Voltamos todos à aldeia de onde ele partiu para a vida, a mesma para onde me trouxe para também dali eu partir. Deixou-me dele muitas coisas, entre elas essa vontade de partir, de viajar para que encontre sempre o aconchego que gosto tanto de sentir quando regresso a casa. Foi humilde e poderoso, generoso e arrogante, verdadeiro e implacável... foi pouco para tantos e imensamente muito para mim. Teria ficado muito feliz por saber que o amigo da vida não faltou a este último encontro. A última vez que atravessamos juntos a nossa aldeia o meu coração fez-se pequenino enquanto pedia a Jesus que olhasse por ele. Até ali fizemos isso juntos, agora deixava-o completamente a Ele. Sei que agora descansa finalmente. Acabaram as dores, ficaram as saudades, as respostas do Ministério da Saúde às suas mais recentes indignações e por fim as últimas conversas, sementeiras, e operações matemáticas imaginárias. Partiu sem dores e protegidos pelas lesões cerebrais que o retiraram antecipadamente da realidade que essa sim, o faria sofrer. Disse-me adeus, eu disse-lhe adeus. Contei-lhe tudo, partiu a saber todas as novidades das nossas vidas. Partiu informado de tudo e actualizado, como sempre viveu. Ao sair do cemitério olhava para trás, para o lugar onde tínhamos deixado a "casa" onde vivem tantos anos e ao seguir o meu caminho confortava as minhas saudades com os movimentos tão novos, tão jovens de três crianças e um adolescente que são ramificações da grande árvore que ele foi. E foi esse cuidar bem da terra, essa tarefa incansável que cumpriu até ao fim que está à vista, os quatro netos. Sei que está junto do Pai e que velará por nós, na companhia da minha mãe e da família que um dia encontraremos. Como vez durante a vida toda, despediu-se de nós promovendo encontros, que me cabe agora cuidar. E cuidar dos frutos que plantou e que me entregou no nosso último encontro. Perdemos todos uma presença muito forte, uma referência marcante, ficamos com uma imensa herança de valores, ensinamentos, desafios. Sinto uma enorme dificuldade em terminar este texto pois terei que o finalizar com a frontalidade que o marcou e que gora as palavras me impõem: o meu pai morreu.

2 comentários:

  1. Querida Isabel!
    Já a leio há muito sem comentar.
    Gosto do modo como escreve, porque transmite de um modo simples, mas tão bonito o que lhe vai na alma.
    Um abraço bem forte com a Paz que sempre transmite.
    Ps:foi para mim que enviou a Moleskine,lembra-se?

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  2. Querida Isabel
    regressada de férias cheguei quase agora. De raspão passei por aqui... e li.
    ...não posso deitar-me sem lhe deixar um beijnho... uma festa, porque não? Com carinho, Isabel. Muito carinho.
    Sempre,
    Isabel Jácome

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